Até agora estudamos a ciência alimentar a partir de uma perspectiva ambiental e a ética alimentar sob o ponto de vista dos fundamentos e princípios morais de Healing Earth. Seria de se esperar que esse conhecimento fosse suficiente para nos colocar em ação. Para algumas pessoas é o suficiente, porque seu espírito interior já está dedicado à tarefa de apoiar uma alimentação saudável e sistemas alimentares sustentáveis. Para outras pessoas, o conhecimento científico e ético ainda não tem sido suficiente para fazê-las agir.

Análise Detalhada

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Clique aqui para ver um vídeo sobre o Projeto Bacia Hidrográfica Verde da China. Depois que um grande projeto de barragem do governo devastou sua comunidade, o povo Yi da província de Yunnan aprendeu novas habilidades agrícolas, mobilizou seu espírito comunitário e salvou suas culturas e suas vidas.

A transição de um sistema alimentar insustentável para um sistema mais sustentável requer mais do que conhecimento científico e ético. Exige que se tenha um espírito interior fervoroso com relação a alimentos saudáveis, justiça alimentar e sistemas alimentares sustentáveis, um espírito que mobilize a ciência e a ética para esses fins. Requer que se tenha, consciente ou inconscientemente, uma espiritualidade que integre a dimensão da alimentação saudável.

Ao longo de Healing Earth descrevemos a espiritualidade ambiental de três maneiras:

  • as crenças mais profundas de uma pessoa sobre o significado e o valor do mundo natural;
  • a experiência de encantamento e admiração de uma pessoa sobre a beleza sagrada e a complexidade do mundo natural;
  • as maneiras como as pessoas, desde tempos imemoriais, compreenderam e utilizaram a natureza nas religiões do mundo.

Com isso em mente, começamos nossa breve exploração da dimensão da espiritualidade dos alimentos, voltando às questões colocadas no final do estudo de caso de abertura deste capítulo: Que significados espirituais os seres humanos deram à alimentação? Como a alimentação às vezes evoca admiração e transmite uma qualidade sagrada? Quais são alguns dos rituais e crenças sobre alimentos encontrados nas religiões do mundo?

Alimentação e Significado

Análise Detalhada

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A pesquisa mostra que as refeições familiares regulares ajudam os jovens a construir mais do que corpos saudáveis, mas também “bens internos” de competência social e auto-identidade positiva. Leia aqui o arquivo da pesquisa “Frequência das refeições em família e desenvolvimento do adolescente” do Journal of Adolescent Health.

Art by Paul Cezanne
Uma das naturezas mortas mais famosas da arte moderna é The Basket of Apples.1

Dificilmente se pode pensar em uma substância à qual os seres humanos atribuam mais significado do que o alimento. Nossas vidas dependem dele fisiológica, psicológica e espiritualmente. A fisiologia e a psicologia nos fornecem importantes conhecimentos empíricos sobre por que razão e como os alimentos nutrem corpos e mentes. Mas nenhum desses campos nos dá conhecimento sobre o que o alimento significa para nós. Esse é um conhecimento de outro tipo, o conhecimento que reside no coração e no espírito humano.

Com frequência são os artistas que comunicam o conhecimento dos alimentos que vem do espírito humano. Por que pinturas de natureza morta de alimentos têm sido um tema de arte popular desde o século 19? Porque nos lembram, de forma estética, a importância da comida em nossas vidas, ou de um momento agradável, como um delicioso piquenique que uma vez fizemos em um parque. Mas os artistas também sabem que a comida leva nosso espírito a lugares ainda mais profundos do que a fome e a memória.

Os banquetes são expressões dinâmicas do espírito humano que têm fascinado os artistas por séculos. Em Peasant Wedding Feast (Festa Camponesa de Casamento), de 1556, Peter Bruegel captura a ação: jarros de vinho sendo enchidos, homens carregando tigelas de mingau em uma bandeja feita de uma porta, músicos tocando. Para nos atrair ainda mais para a ação, Bruegel coloca uma questão: onde está o noivo?2

Um desses lugares é o relacionamento humano. O antigo filósofo grego Aristóteles observou que os seres humanos são animais sociais. Como tais, usamos a comida não apenas como alimento, mas também como um símbolo de relacionamento. Por exemplo, normalmente oferecemos comida a outras pessoas como um ato de amizade; às vezes comemos a comida do nosso anfitrião, mesmo que não tenhamos fome ou não gostemos dela; podemos até começar nossas refeições em grupo com uma oração. Cada um desses gestos sociais com comida tem menos a ver com nutrição física do que com a nutrição de nossos espíritos e as relações com aqueles que nos rodeiam.

Painting by Archibald Motley
Quatrocentos anos depois de Bruegel os artistas ainda são fascinados pelo poder da comida para alimentar a fome relacional do espírito humano. Em Barbecue (1960), Archibald Motley explora o potencial da comida para quebrar as barreiras raciais. 3

Nossas relações com os outros de forma alguma esgotam a informação que o alimento comunica simbolicamente. Para algumas pessoas, o próprio ato de preparar comida expressa uma arte interior que nenhuma outra atividade consegue para elas. Nos últimos anos, os cineastas capturaram esse espírito em personagens como Babette em A Festa de Babette (1987) e Primo em A Grande Noite (1996).

Os artistas nos despertam para o não físico, mas o verdadeiro poder que a comida tem em nossas vidas. Às vezes esse despertar pode ser um choque. Andy Warhol conhecia bem as naturezas mortas de alimentos tradicionais e a rica sensibilidade que essas obras comunicam sobre a relação humana com a comida. Em sua instalação artística Campbell’s Soup Cans (1962), Warhol apresenta um tipo diferente de natureza morta alimentar. Aqui, um produto alimentício comercializado enlatado é retratado com monotonia branda e repetitiva. Warhol nos convida a nos perguntarmos: é isso que comida passou a significar em nosso sistema alimentar industrializado? É mesmo possível saber que dimensão de espiritualidade pode haver em um mundo de latas de sopa?

Campbell’s Soup Cans (1962) de Andy Warhol.4

Muito mais pode ser dito sobre o significado da comida em nossas vidas. A arte, a poesia e a música dedicadas a este assunto são vastas. Talvez esta breve exposição desperte seu interesse em prosseguir com este assunto fascinante.

Questões a Considerar

Encontre um poema, música ou pintura que mostre comida. O que você acha que o artista está tentando comunicar a você sobre comida? Você pode sentir o que a comida significa para este artista?

Alimentação e Encantamento

O teólogo ortodoxo oriental Alexander Schmemann escreve:

“Séculos de laicismo não conseguiram transformar a alimentação em algo estritamente utilitário. A comida ainda é tratada com reverência. Uma refeição ainda é um rito – o último “sacramento natural” da família e da amizade.” 5

Pessoas Inspiradoras

George Washing Carver headshot

George Washington Carver (1865-1943) estava maravilhado com a qualidade sagrada dos alimentos e com a Terra de onde eles vinham. Um dos maiores pesquisadores agrícolas da história dos Estados Unidos, o trabalho de Carver com amendoim e batata doce ajudou os agricultores pobres do sul a variar suas safras e melhorar suas dietas.6

A comida às vezes pode produzir um sentimento de admiração ou gratidão dentro de nós, o que Schmemann chama de “reverência”. Imagine que você está vivendo longe de casa. Um amigo percebe seu humor e prepara uma refeição especial com alimentos que são consumidos em seu local de origem. Você fica impressionado com este gesto, grato ao seu amigo e confortado por esta surpresa ‘imerecida’. A palavra cristã para uma bênção imerecida é ‘graça’. Neste exemplo a comida se tornou um meio de graça. Na verdade, a palavra “graça” é como muitos cristãos chamam a oração que dizem antes de cada refeição.

Quando o alimento comunica graça, ele assume uma qualidade sagrada. A palavra “sagrado” se refere à qualidade de um objeto que o torna de um valor tão supremo que não pode ser medido pelos padrões humanos. Novamente, os artistas costumam ser os melhores comunicadores dessa qualidade “sagrada” dos alimentos. Em seu poema A Cebola, Pablo Neruda nos mostra como até uma simples cebola possui um poder sagrado incrível.

Cebola,
frasco luminoso,
sua beleza formada
pétala por pétala,
escamas de cristal a expandiram
e no segredo da terra escura
seu ventre cresceu redondo com o orvalho.
Sob a terra
o milagre
aconteceu
e quando sua desajeitada
haste verde apareceu,
e suas folhas nasceram
como espadas
no jardim,
a terra acumulou seu poder
mostrando sua transparência nua,
e como o mar remoto
em levantar os seios de Afrodite
duplicando a magnólia,
a terra também
fez você,
cebola,
clara como um planeta
e destinada a
brilhar,
constelação constante,
rosa redonda de água,
sobre
a mesa
dos pobres.

Você nos faz chorar sem nos machucar.
Tenho elogiado tudo o que existe,
mas para mim, cebola, você é
mais bonita que um pássaro
de penas deslumbrantes,
globo celestial, taça de platina,
dança imóvel
da anêmona nevada

e a fragrância da terra vive
em sua natureza cristalina.


Em sua pintura Natureza Morta Eucarística, o artista Salvador Dali coloca três peixinhos, um ouriço-do-mar e um pedaço de pão em uma toalha de mesa verde e dourado com uma iluminação celestial. Como Neruda, Dali está tentando nos despertar para o incrível poder sagrado que existe até mesmo nos alimentos mais comuns.

Natureza morta eucarística, Salvador Dali, 1952 7

Questões a Considerar

Se estivesse vivendo longe dos seus amigos e familiares, haveria alguma comida típica ou receita familiar que você gostaria de comer para se ‘sentir em casa’? O que há de especial para você nessa comida? O sabor? Existem outras razões pelas quais ela é especial para você?

Comida e Ritual

Pintura Cristã Primitiva de uma Refeição Compartilhada, Catacumba de San Callisto, século III.8

O título da pintura de Dali refere-se a uma das refeições rituais mais conhecidas nas religiões do mundo: a Eucaristia Cristã (do grego eukharistos, que significa “grato”). Aqui, o pão e o vinho são consagrados e consumidos pelos cristãos em memória da ‘última ceia’ de Jesus Cristo com os seus apóstolos. Este evento é recontado no Evangelho de Marcos 14:17-25:

Durante a ceia, tomando um pão, havendo dado graças, o partiu e serviu aos discípulos, dizendo: ”Isto é o meu corpo”. Então tomou um cálice, deu graças a Deus e o deu aos seus discípulos; todos beberam do cálice. E Ele disse: “Este é o meu sangue, o sangue da nova Aliança, derramado por muitos. Pois vos declaro que de agora em Diante não mais beberei do fruto da videira até que venha o Reino de Deus.

Alguns estudiosos acreditam que esta “última ceia” ocorreu em forma de Seder, a refeição ritual centenária da comunidade judaica quando comemora seu Êxodo da escravidão egípcia pelo poder libertador de Yahweh. Durante a refeição, os participantes recontam a história do Êxodo e comem alimentos que simbolizam a ‘Páscoa Judaica’ do Egito.

Showing the Passover plate in Jewish tradition
Alimentos Simbólicos Consumidos Durante a Refeição do Seder Judaico. 9
Nesta oferta especial de comida hindu ‘Chappan Bhog’, 56 variedades de alimentos são cozidos e oferecidos às divindades. Os participantes então comem o prasada como um ato de purificação religiosa.10

Hinduísmo a comida também desempenha um papel importante na adoração. Nos templos hindus alimentos especiais chamados prasadas são oferecidos às divindades. Os rituais do templo não estão completos até que os prasadas sejam distribuídos e consumidos pelos fiéis. Acredita-se que comer prasadas purifica o corpo e a mente. Leia esta descrição fascinante de como os hindus preparam e oferecem prasadas.

Outra relação ritual com a comida que as pessoas praticam em muitas religiões do mundo é o ‘jejum’. O jejum é uma redução ou remoção periódica de certos alimentos (ou todos os alimentos) da dieta. O propósito do jejum é direcionar a atenção de uma pessoa para longe das necessidades físicas do corpo e para perto das necessidades espirituais da alma. Essas necessidades podem incluir meditação, oração pessoal, obras de caridade e esmolas.

Durante o Ramadã, o nono mês do calendário islâmico, os muçulmanos jejuam todos os dias, do amanhecer ao pôr do sol. Durante o jejum os muçulmanos se abstêm de consumir alimentos, beber líquidos, fumar e ter relações sexuais. Para os muçulmanos a relação entre o jejum e o crescimento espiritual é descrita no Qur’an 2 183-185:

Ó crentes, o jejum é recomendado para vocês
como era para aqueles antes de você,
para que você possa se tornar justo.
Jejue um número (fixo) de dias,
mas se alguém estiver doente ou viajando
(ele deve completar) o número de dias (que ele perdeu);
e aqueles que acham difícil jejuar
devem expiar alimentando uma pessoa pobre.
Pois o bem que eles fazem com um pouco de dificuldade é melhor para os homens.
E se você jejuar será bom para você, se você soubesse.

O Ramadã é o mês em que o Alcorão foi revelado
como orientação ao homem e prova clara da orientação,
e critério (de falsidade e verdade).
Portanto, quando vir a lua nova, você deve jejuar o mês inteiro;
mas uma pessoa que está doente ou viajando
(e não o fizer) deve jejuar em outros dias,
como Deus deseja calma e não sofrimento para você,
para que você complete o número (fixo) (de jejuns),
e dê glória a Deus
pela orientação, e seja grato.

Para a maioria dos cristãos, o jejum é praticado durante o período da Quaresma. Tal como acontece com a refeição eucarística, a prática cristã de jejuar está enraizada no exemplo bíblico de Jesus. O Evangelho de Mateus 4: 1-2 começa a história do jejum de Jesus dizendo que “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo diabo. E ele jejuou quarenta dias e quarenta noites, e depois teve fome. ” Por meio da restrição alimentar, Jesus replicou os quarenta anos em que seus ancestrais vagaram no deserto após o Êxodo.

Análise Detalhada

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Clique aqui para assistir a um peq ueno vídeo sobre as leis judaicas Kosher.

Um schochet judeu abatendo uma galinha ritualmente. 11
Em algumas religiões, a atenção ritual ao consumo de alimentos não é uma atividade ocasional, mas uma prática diária. Para os judeus, as leis kashrut (ou “kosher“) especificam alimentos que são permitidos ou proibidos todos os dias da vida. As leis de Kashrut se aplicam a todos os tipos de alimentos: animais, frutas, vegetais, cereais e líquidos. As leis também regulam como os alimentos devem ser preparados para consumo. Para certos mamíferos e pássaros, a preparação requer a habilidade de um schochet, ou abatedor ritualístico. Como a lei judaica proíbe causar dor desnecessária aos animais, o schochet garante que os animais morram rapidamente quando abatidos.
Rótulos halal notificam os muçulmanos de que o alimento foi preparado de acordo com a lei muçulmana.12

O Judaísmo não é a única religião com leis dietéticas diárias. Os muçulmanos chamam seus regulamentos alimentares de halal. Os regulamentos islâmicos halal são muito parecidos com as leis judaicas de kashrut, com exceção do álcool, que o halal não permite.

Essas são apenas algumas das muitas maneiras pelas quais os humanos encontram significado na comida, sentem admiração pela natureza sagrada da comida e usam a comida em suas práticas rituais. Juntas, essas atividades mostram como os seres humanos há muito atribuem importância espiritual à comida. Se os sistemas alimentares sustentáveis devem substituir as práticas insustentáveis, um despertar do público para a dimensão espiritual dos alimentos irá inspirar e fortalecer essas intrincadas relações. Quando alinhada com sólidos conhecimentos científicos e éticos, a espiritualidade alimentar pode promover ações profundamente comprometidas com alimentos saudáveis e sistemas alimentares sustentáveis. Exemplos deste tipo de ação são dados na próxima seção.

Questões a Considerar

Selecione uma religião mundial com a qual você não esteja familiarizado e pesquise como a comida é entendida nessa religião. Faça as três perguntas que usamos em Healing Earth para explorar a espiritualidade alimentar:

  • Qual é o significado dado à comida nesta religião?
  • Esta religião considera o alimento sagrado?
  • A comida é usada em algum dos rituais desta religião?